Esportes e Pandemia: a normalidade impossível

      

Foto 01 - Sanitização do Estádio do Maracanã na cidade do Rio de Janeiro em plena pandemia


(Escrito por: Renato Coelho)


Sempre os governos de diferentes países e em diversas épocas utilizaram os esportes como instrumento ideológico e de manipulação da população, desde Getúlio Vargas, passando pelos presidentes do regime militar, FHC, Lula, Dilma e chegando até aos dias atuais. E nestes tempos tenebrosos de pandemia não tem sido diferente. As velhas e demagógicas políticas de controle estão sendo constantemente utilizadas por governos, instituições e também pela grande mídia no sentido de forçar as pessoas a acreditarem que mesmo em um contexto de pandemia, com as curvas ascendentes de mortes e de contágios pelo novo coronavirus no Brasil, cinicamente vaticinam que a vida pode simplesmente seguir nos antigos padrões da normalidade social ignorando a alta transmissibilidade e letalidade do vírus Sars-Cov-2 e suas mutações não menos perigosas. O que estamos a assistir é uma tentativa obstinada por parte do Estado, da grande mídia e também dos grandes empresários em impor uma normalidade impossível em tempos de descontrole total da pandemia no Brasil. Podemos denominar este atual contexto de a Ditadura do Falso Normal, onde se naturaliza a morte em massa a fim de permitir uma continuidade da vida dentro de uma descontinuidade em tempos de pandemia. Hospitais em pleno colapso de atendimento, com colocação de contêiners de câmara fria nos pátios para acomodação de corpos, multiplicações de mutações virais mais letais, falta de vacinas, escassez de oxigênio medicinal para o atendimento de pacientes com Covid-19 e campeonatos estaduais, nacionais e internacionais de futebol, basquete e outros esportes ocorrendo normalmente em solo brasileiro. Além de aumentar os contágios entre os atletas e os seus familiares, a continuidade das práticas esportivas profissionais é capaz de provocar ainda o adoecimento ou a morte de centenas de outros trabalhadores envolvidos direta ou indiretamente com o espetáculo esportivo. Além deste grave e real problema sanitário de contágio dentro do ambiente esportivo, tais eventos no contexto brasileiro de aumento de transmissão criam uma falsa normalidade capaz de expor milhões de pessoas ao vírus, ao fazerem as mesmas acharem que a vida já voltou ao normal, porque os seus times do coração voltaram a jogar os campeonatos nacionais, de fora de consciente ou inconsciente, essa ação de assistir o jogo e torcer, mesmo que pela TV, é capaz de provocar um relaxamento da maioria da população, sob  o discurso falacioso do “novo normal”, de um normal que nunca existiu, mesmo antes da pandemia. Esse bombardeio constante de propaganda da falsa normalidade atinge a todos e colabora com a necropolítica do Estado brasileiro em transformar a curva exponencial da pandemia no Brasil na mais alta e longa do mundo, sob um platô com uma média móvel de 900 a 1000 mortes diárias. Os números e a matemática ratificam que a vida não segue nada de normal.

O esporte a partir do século XX se transforma em espetáculo midiático e em megaevento de entretenimento de bilhões de espectadores em todo o mundo. O esporte mercadoria se transforma em produto de consumo e é ofertado não mais como exercício físico, promoção de bem estar ou prática de lazer, mas é transformado em objeto de contemplação e de fethiche. O sujeito que antes praticava o esporte e o próprio esporte se transformam em objetos reificados. O ativo praticante e desportista do dia a dia  ou aquele torcedor apaixonado pelo seu time e frequentador dos estádios desaparecem no mundo do esporte espetáculo moderno e passam a dar lugar ao consumidor passivo do entretenimento esportes, um mero sujeito inerte que apenas contempla virtualmente o esporte espetacularizado e globalizado, que se transformou apenas em imagem a ser vendida e consumida. Nessa metamorfose para se enquadrar no processo de fetichização capitalista, o esporte não apenas se transforma em mais uma mercadoria, mas também perde seus significados, seus símbolos, regras e tradições. Nesse processo de mercadorização e de aniquilamento dos sentidos dos esportes, ocorre o empobrecimento e a perda dos seus elementos constitutivos e essenciais ligados a estética, a arte, ao popular e à história humana.

Mas o esporte não é hoje uma mercadoria qualquer, mas sim uma mercadoria singular e que movimenta uma cifra de bilhões de dólares no mundo. E além de produzir uma escala astronômica de lucros aos seus patrocinadores, os esportes possuem também um capital político e ideológico incomparáveis. Um exemplo marcante dos esportes como instrumento ideológico foi demonstrado durante o período da chamada Guerra Fria, quando da polarização do mundo entre a antiga União Soviética (URSS) e os EUA, que dividiu o planeta entre países capitalistas  apoiados e liderados pelos EUA e os países do bloco comunista, ligados à antiga União Soviética. Durante este período as olímpiadas se transformaram em palco de disputas hegemônicas entre atletas do mundo capitalista versus atletas do mundo comunista. Nestas disputas, no entanto, o “fair play” nunca existiu, pois eram constantes e comuns os escândalos com doping envolvendo atletas de ambos os lados e que utilizavam esteroides anabolizantes e outros fármacos para alcançarem o pódio e as cobiçadas medalhas olímpicas, e com isso a hegemonia nos esportes mundiais que servia como a mais poderosa e eficaz propaganda estatal.

Foto 02 - Filme Rock mostra o contexto da Guerra Fria nos esportes: Rocky Balboa (USA) x Ivan Drago (URSS)

Nos países da América Latina não foi diferente o uso dos esportes por governos e regimes ditatoriais, sempre houve ações estatais que transformaram os esportes em bandeira de propaganda de representantes políticos ou de partidos. Na Argentina de Perón ao Brasil de Vargas, sempre se soube do grande poder de fascínio, de êxtase e de admiração provocados pelos esportes, em especial do futebol, sobre a maior parte da população.

Durante o período em que vigoraram as ditaduras militares na América do Sul, houveram casos emblemáticos e históricos onde o Estado se utilizou do esporte para promoção e propaganda de seus ideais e valores, sob o falso manto do triunfalismo, da eficiência, do mérito e da sobrepujança, que são as características do esporte. E mais ainda, aqueles que conseguiam as qualidades de serem os mais rápidos, mais velozes, que iam mais altos e mais longe estavam então à serviço da propaganda do Estado.

A ditadura militar do presidente Videla na Argentina utilizou a Copa do Mundo de 1978 como propaganda do regime ditatorial para o mundo, tentando esconder as mazelas sociais do país, a pobreza e a violência estatal contra a os opositores da ditadura. A Argentina que era sede da Copa do Mundo FIFA de Futebol em 1978 aumenta a violência e a repressão aos opositores no país durante o período da Copa. Enquanto a bola rolava nos gramados argentinos, milhares de pessoas passavam fome nos subúrbios das grandes cidades devido à miséria no país ou eram presas, torturadas e mortas pela polícia argentina.  Mas a propaganda de Videla tentava passar ao mundo, a visão de uma outra Argentina, bem diferente daquela que se via nas ruas de Buenos Aires ou nos porões da polícia de todo o país. A propaganda estatal era a de uma Argentina do “país do futebol” e da seleção de Passarela campeã do mundo em 1978. Mas, para se chegar à final da copa e ao título, o governo argentino promoveu várias intervenções junto à Fifa e também na escancarada manipulação de jogos que beneficiaram o time anfitrião. Um jogo bastante emblemático foi entre Argentina e Peru, onde a seleção Argentina necessitava vencer a equipe adversária peruana com um placar de 4 gols de diferença para avançar à próxima fase, e tirar a seleção do Brasil daquela Copa. Com visita do general Videla ao vestiário da seleção peruana antes e após o jogo contra a Argentina, o placar final de 6 X 0 a favor da Argentina, provocou a desclassificação do Brasil, e  fez a seleção argentina avançar à final e disputar o título contra a Holanda, sagrando-se campeã do mundo.

Foto 03 - Argentina campeã mundial na Copa do Mundo de 1978


No Chile, da mesma forma o ditador Augusto Pinochet, passa a promover intervenções e apoiar o Colo Colo, o time mais famoso e popular da época e que formava a base da seleção chilena. Com o objetivo também de tentar desviar a atenção da população chilena e do mundo das barbáries, atrocidades e genocídios promovidos pela ditadura chilena aos seus opositores, o governo do ditador Augusto Pinochet se utiliza do futebol como instrumento de controle e para mascarar a realidade. O Estádio Nacional do Chile em Santiago se tornou na época em um dos maiores símbolos da cruel ditadura chilena. Este famoso e importante estádio de futebol serviu de local de prisão e tortura para milhares de simpatizantes e apoiadores do governo deposto de Salvador Allende. Milhares de chilenos foram assassinados pela ditadura de Pinochet  dentro do Estádio Nacional do Chile. Um jogo que não aconteceu, mas que entrou para a história do futebol foi nas eliminatórias para a copa do mundo de 1974 na Alemanha, onde a seleção chilena deveria enfrentar a seleção da antiga União Soviética, mas o time russo se recusou a entrar em campo em protesto contra a ditadura de Pinochet e então a seleção do Chile vence o jogo por W.O e se classifica, com o estádio lotado com mais de 20 mil torcedores chilenos que não assistiram a jogo nenhum.


Foto 04 - Estádio Nacional do Chile 


No Brasil podemos citar também vários momentos sobre a utilização dos eventos esportivos como instrumento ideológico e de manipulação, que vão desde os governos de Getúlio Vargas, passando pelos militares pós 1964 e indo até os governos atuais.

Um dos episódios mais emblemáticos e marcantes da história do futebol brasileiro, e sobre a  ideologização do maior esporte nacional, ocorreu em 1970 na disputa da Copa do Mundo do México, onde a seleção comandada por Pelé & Cia, considerada a maior seleção de futebol de todos os tempos, se transformou na maior e mais poderosa bandeira de propaganda política da ditadura militar brasileira. Enquanto milhares de brasileiros, que se opunham à ditadura, eram torturados e mortos nos porões das delegacias policiais, o governo exaltava e patrocinava a chamada seleção canarinho que se consagrou tricampeã no México em 1970. A propaganda estatal sobre a seleção de Pelé não somente tentava passar uma boa imagem do Brasil no exterior, assim como também conseguia desviar o foco da população brasileira das questões importantes e ligadas à fome, à miséria , às injustiças sociais e sobretudo com relação à violência e repressão institucionalizada do Estado contra os próprios brasileiros. O futebol ajudava a vender a propaganda do “milagre brasileiro” referente ao crescimento artificial da economia e também promovia a falsa imagem criada pelos militares do regime caracterizado pelo slogan “Brasil Potência” ou “País do futuro”.

Foto  05 - General Emílio G. Médici recepciona seleção tricampeã do mundo em 1970.


Nos governos do PT, de Lula e Dilma, (2002-2016) mais uma vez se gastou muita energia e volumosas quantias em dinheiro para transformar o país na sede dos dois  maiores megaeventos  esportivos do planeta, a Copa do Mundo Fifa 2014 e Olimpíadas Rio 2016. A grande êxtase e o entusiasmo em sediar os megaeventos mais importantes do esporte moderno contribuíram também para desviar o foco e a atenção da população brasileira da sua realidade, camuflando os problemas sociais e servindo de capital politico para o governo. Porém, os gastos astronômicos com a construção das chamadas Arenas de futebol com padrão Fifa, que ultrapassaram os 30 bilhões de reais (somente o estádio Mané Garrincha em Brasília custou cerca de 1,5 bilhão de reais e com provas de superfaturamento). Os gastos com as  Olímpiadas do Rio em 2016 ultrapassaram os gastos com a copa do mundo de 2014, alcançando a cifra de 40 bilhões de reais. Os altos gastos com os megaeventos, sob o falso discurso de “Legado Olímpico”, e em contrapartida  a falta de investimentos em infra-estrutura ligadas à saúde, educação, saneamento e geração de empregos, e entre outros fatores importantes, provocaram protestos em todo o país, onde a população exigia com bloqueios de ruas e rodovias maiores investimentos em saúde e educação e ainda a não realização destes mega eventos esportivos. As consequências foram catastróficas com o endividamento público, a inexistência de nenhum legado da copa ou das olimpíadas e ainda o fracasso político da realização dos mega eventos ajudaram a derrubar a popularidade do governo do partido dos trabalhadores (PT), e dentre outros fatores também importantes, a crise gerada potencializou o processo de impeachment da presidenta Dilma Roussef (PT) em 2016.

Foto 06 - Alunos e professores da UEG cercam o ônibus da seleção brasileira de futebol em frente ao Mercury Hotel no Setor Oeste em Goiânia durante amistosos de preparação para a Copa das Confederações no ano de 2013. (Movimento Mobiliza UEG).


Hoje, durante a pandemia do novo coronavirus e o governo de Jair Bolsonaro, também podemos observar a velha estratégia de se utilizar o esporte como propaganda na criação de uma falsa normalidade, com as mesmas estratégias e mecanismos que adotados por governos anteriores, desde Vargas, passando pelos governos da ditadura militar pós 1964 e pelos governos do PT a partir da década de 2000.

A partir de agosto de 2020, ainda quando se observava grande aumento nas curvas de contágios e de mortes pelo novo coronavirus em todo o país, houve o reinício do campeonato brasileiro de futebol e também dos campeonatos estaduais. Mesmo sem público nos estádios, foram criados vários protocolos sanitários para evitar o contágio por atletas e pelas comissões técnicas. Mas o que assistimos foram vários surtos da covid-19 entre times de todas as regiões do Brasil, inclusive do Goiás E.C e também o Atlético Goianiense, ambos da capital goiana. E no dia 22 de setembro de 2020 o time com a maior torcida do Brasil teve 27 pessoas, O Clube de Regatas do Flamengo, entre atletas, comissão técnica e cartolas, contaminados em viagem à cidade de Guayaquil no Equador pela disputa da copa Libertadores da América. O time que mais pressionou as autoridades para o reinício dos jogos durante a pandemia, teve praticamente quase todo o time e o próprio técnico contaminados pelo vírus Sars-Cov-2, provando assim que não existe protocolo seguro quando a transmissão do vírus é acelerada e ascendente (Rt>1).

Como se não bastasse, existe hoje no Brasil uma forte pressão de clubes sobre a CBF no intuito de liberar a participação de torcedores nos estádios durante a pandemia. Esse movimento também é encabeçado pelo time do Flamengo, que exige a abertura dos portões e das bilheterias aos torcedores. O ex-prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivela, na época de olho nas eleições municipais, cedeu à pressão e aprovou a reabertura do Maracanã aos torcedores. Mas com a revolta de outros dirigentes de clubes importantes, como Botafogo e Fluminense,que não concordam com a reabertura apenas do Maracanã, a prefeitura carioca e o Flamengo voltaram atrás na tentativa de abrir os portões para os torcedores em plena pandemia.

Foto 07 - Flamengo Campeão Brasileiro em pleno crescimento da segunda onda de Covid-19 no Brasil.


O que está de fato por detrás da volta do futebol e também das torcidas  nos estádios em pleno aumento de casos e de contágios na pandemia? Hoje o país contabiliza mais de 250 mil mortos pela covid-19 e várias cidades, como Goiânia, experimentam atualmente o pico de casos e de mortes na pandemia na chamada segunda onda. Essa chamada necropolítica que promove o genocídio de brasileiros em todos os estados da federação, representa a tentativa desesperada e pragmática dos governos do país (federal, estaduais e municipais) em criar uma falsa normalidade (alguns denominam de “novo normal”), onde o esporte e principalmente o futebol pode ser capaz de criar no imaginário das pessoas a falsa sensação de que a vida voltou a ser como antes, uma ilusória percepção de que podemos sair de casa e trabalhar como se a pandemia já estivesse terminado.  Mas é o contrário, a pandemia está em sua fase mais letal e veloz, ceifando milhares de vidas a cada instante. Há uma estimativa do próprio Ministério da Saúde que prevê mais de 3.000 mortes diárias no Brasil para os meses de março e abril de 2021, e os campeonatos estaduais e a Copa do Brasil ainda continuam com os seus jogos ainda em andamento.

Vê-se assim uma tentativa desesperada de  recuperar as perdas da economia, em um país onde o governo se utiliza de um discurso negacionista, se isenta na criação de políticas públicas de mitigação dos contágios, faz então multiplicar as tentativas e as propagandas de um falso normal, onde os esportes servem de instrumento de mascaramento do verdadeiro extermínio de classe no Brasil durante a pandemia. As pessoas são induzidas e convidadas a consumir e se divertir mesmo com o vírus letal e sem controle nas ruas. E o esporte é mais uma vez este mecanismo importante de criação da normalidade impossível, tal qual ou muito pior, do que se assistimos durante os períodos da chamada Guerra Fria, nas ditaduras da América Latina ou ainda com os já citados megaeventos dos governos do PT no Brasil.

A grande verdade, todos já sabem, para se controlar uma pandemia em um país pobre como o Brasil requer grandes investimentos que garantam a manutenção financeira das famílias de todos os trabalhadores, dos desempregados e dos mais pobres, também a criação de políticas públicas coordenadas na área da saúde, capazes de promover a testagem em massa, o rastreamento em massa, o isolamento em massa e o tratamento de todos os contaminados do país, sejam os casos mais graves ou assintomáticos. Ainda um programa de vacinação em massa que seja eficiente e rápido a fim de frear as mortes pela Covid-19.  Porém, nenhuma destas ações se praticam no Brasil, daí o caminho mais fácil em colocar o trabalhador dentro dos estádios ou em frente da TV para assistir o seu time em plena pandemia. O atalho está sendo feito em utilizar os esportes como anestésico para uma população em pânico e à beira de uma revolta por causa dos prejuízos e do aumento da miséria provocado pela pandemia. Essa é a velha estratégia dos governos e do Estado para se criar o falso normal, porém, a fome não é falsa e não se podem esconder os cadáveres de milhares de mortos. E o culpado, obviamente, não é o vírus.

 

COVID-19: Lugar de Criança não é na Escola

 

Colégio Estadual Murilo Braga - bairro Vila Nova em Goiânia-Goiás


(Escrito por: Renato Coelho)

Atualmente as crianças estão sendo uma das maiores vítimas da pandemia da Covid-19 em todo o mundo. Talvez sejam as que mais estão sendo afetadas pelas regras de isolamento social decretada por diversos países ao redor do planeta, já que as crianças constituem o grupo que mais tempo tem experimentado o confinamento de forma contínua em casa, haja visto o fechamento de escolas e creches há quase um ano. Não há dúvidas que para a maioria das crianças, o isolamento social afeta drasticamente o seu desenvolvimento motor, cognitivo e social, já que as interações e os relacionamentos coletivos nesta faixa etária são primordiais para o desenvolvimento das funções psicológicas superiores da mente.

Várias escolas e creches de vários países distintos ensaiaram o retorno às aulas presenciais, mas devido ao alto número de surtos e contágios pelo novo coronavírus e de suas mutações mais transmissíveis e contagiosas, tais escolas fecharam novamente os seus portões, seja na Europa, Ásia, Oceania, África ou na América. O retorno às aulas presenciais no atual momento da pandemia no Brasil se torna algo totalmente impossível, sejam quais forem os protocolos de segurança sanitária, pois as novas variantes do vírus são cerca de dez (10) vezes mais contagiosas, tornando inevitáveis surtos entre crianças escolares, pois as escolas são por natureza ambientes de aglomerações.

O que fazer então com as nossas crianças?

No caso específico da cidade de Goiânia, que atualmente experimenta uma segunda onda com índice de transmissão superior a um (01) Rt>1, e com previsões de pico de contágios provavelmente para os meses de março e abril, o recomendado neste contexto é ainda o isolamento social e a adoção somente de aulas virtuais (on-line), ao contrário do que diz em as autoridades locais que estão permitindo a abertura de escolas com 30% de ocupação e sistema de rodízio de alunos e de turmas.

Neste momento tão complexo, difícil e delicado, sugerimos alternativas para a promoção de um estilo de vida mais saudável e humanizado para as crianças durante a pandemia. Ainda que as crianças estejam em aulas remotas e sem aulas presencias, é possível criar uma rotina saudável, lúdica e humanizada para as crianças em tempos de isolamento social na pandemia.

Uma das principais considerações e argumentos para a manutenção das aulas presencias para as crianças na pandemia, diz respeito ao atraso no desenvolvimento infantil, e podendo produzir sequelas no desenvolvimento e na aprendizagem das crianças. Porém, o que os defensores desta tese desconsideram, são as sequelas ainda piores e mais agressivas provocadas pela covid-19 em crianças, ou seja, as síndromes pós covid-19, além de graves e duradouras, sejam em crianças ou em adultos, possui um outro importante agravante, tais sequelas e síndromes são totalmente desconhecidas a longo prazo, podendo gerar doenças crônicas, ou seja, que até o presente momento não possuindo cura pela medicina. Portanto, colocando tudo na balança, é notório que ser contaminado por covid-19 pode acarretar danos e problemas maiores do que aqueles provocados pelo isolamento social em si e pela ausência às aulas presenciais. A verdade é que os problemas relacionados ao retardo no desenvolvimento ou na aprendizagem podem ser sanados e recuperados a curto ou médio prazos, porém, as sequelas e os danos da covid-19 ainda são uma grande incógnita e a ciência ou a medicina não podem garantir nada sobre este tema novo e recente relacionado às consequências da covid-19 a longo prazo na infância.

A sugestão é não levar as crianças às aulas presenciais nas escolas, e sim criar atividades lúdicas em casa a fim de provocar um desenvolvimento infantil capaz de amenizar os danos provocados pelo isolamento social intermitente. Obviamente que nada substitui as interações sociais entre as crianças e é sabido por todos a péssima qualidade e exclusão das aulas remostas (EaD), porém, as ações lúdicas sugeridas para as crianças se refere ao período atual da pandemia, que deverá ainda perdurar por alguns duros anos. A nossa proposta é baseada na Teoria Histórico Cultural de Vigotski sobre o lúdico e a infância. Seja em casa, no quintal, na praça, na rua ou nos parques infantis, estes são ambientes mais seguros do que as escolas para as crianças, desde que as visitas a estes ambientes estejam autorizados pelas autoridades sanitárias e que sejam escolhidos horários com menor fluxo de pessoas, e também mantendo os contatos somente com sujeitos da mesma família, com o uso de mácaras, álcool em gel e com distanciamento social (sem aglomerações). As escolas são projetadas em função das aglomerações, e por natureza são ambientes de múltiplos contatos, e que em tempos de pandemia podem propiciar novos surtos e acelerar os contágios.

 

A Criança, o Brincar e a Teoria Histórico Cultural

O enfoque histórico-cultural se fundamenta essencialmente no fato de que o desenvolvimento psicológico humano é um processo complexo, cujas origens se encontram nas condições e organizações do contexto social e cultural, construídos ao longo das vivências do indivíduo.

A análise histórico-cultural elaborada por Vygotski foi altamente influenciada pelas concepções do materialismo histórico dialético de Marx e Engels, de onde ele extraiu os conceitos sobre atividade, mediação semiótica e a ideia central de que o ser social determina a consciência social.

Vygotski considerava ainda a dupla dimensão do ser humano, sujeito e sujeitado, dando grande importância à participação do outro no processo de significação e constituição do sujeito, sem negar a efetiva participação do Eu, social e historicamente produzido. (ZANELLA e ANDRADA, 2002, p.127).

Vygotski lutou durante toda a vida para mudar todo o paradigma de sua época, ao explicar que o psíquico humano não era apenas algo inerente ao desenvolvimento biológico, era na verdade uma realidade complexa e dinâmica entre o biológico, o social e o cultural.

 

Vigotski esclarece que o desenvolvimento é um processo dialético, marcado por etapas qualitativamente diferentes determinadas pela atividade mediada, justamente o que o promove. Via atividade o homem (entendido enquanto sujeito genérico) é capaz de transformar sua própria história e a história da humanidade, posto que por seu intermédio transforma o contexto social em que se insere e ao mesmo tempo se transforma. (ZANELLA E ANDRADA, 2002, p.128)

 Para Vygotski o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores não são idênticos, nem redutíveis aos fatores que explicam os processos psicológicos elementares, com os quais estão relacionados os processos de desenvolvimento natural. Os processos psicológicos superiores se firmam a partir da participação dos sujeitos em atividades sociais valendo-se de instrumentos de mediação.

O ensino deve servir então como elemento inerente aos processos de desenvolvimento da criança. E é durante tal desenvolvimento dessas relações organizadas que evoluem as funções psíquicas superiores da criança.

A partir da compreensão de que o bom ensino deve operar sobre as conquistas de desenvolvimento ainda em aquisição e adquiridas com auxílio do outro, surge o conceito de desenvolvido por Vygotski de Zona de Desenvolvimento Iminente (ZDI):

A distância entre o nível evolutivo real determinado pela resolução independente do problema e o nível de desenvolvimento potencial determinado pela resolução de um problema sob a orientação de um adulto ou em colaboração com os colegas mais capazes. (VYGOTSKY, 1998, p.86).

Este é um dos conceitos centrais da teoria de Vygotski, é a chamada zona de desenvolvimento iminente, que é a distância que existe entre o que a criança sabe fazer sozinha e o que pode fazer com a ajuda do outro.

As atividades quando inseridas dentro da Zona de Desenvolvimento Iminente (ZDI) permitem trabalhar sobre as funções ainda em desenvolvimento, que não foram plenamente consolidadas, criando uma estreita conexão entre aprendizagem e desenvolvimento, contribuindo para a formulação de indicadores didáticos e avaliativos para o desenvolvimento infantil, quando favorecido pela construção de um cenário de aula que considere o contexto sócio-histórico dos alunos.

As teorias de Vygotski se tornam fundamentais para a compreensão e o resgate do valor e importância do jogo e do brinquedo. A contribuição principal de Vygotski sobre o jogo ou o brinquedo, é a sua valorização, acrescida pela estreita relação que este autor estabelece entre o jogo e a aprendizagem.

Uma das situações que se apresentam como importantes para a análise do processo de constituição do sujeito é a brincadeira infantil. Rompendo com a visão tradicional de que a brincadeira é a atividade natural de satisfação de instintos infantis, Vygotski apresenta o brincar como atividade em que tanto significados sociais e historicamente produzidos são veiculados quanto novos podem ali emergir. (ZANELLA e ANDRADA, 2002, P.128).

As intenções e ações lúdicas no jogo possibilitam a criação da Zona de Desenvolvimento Iminente (ZDI), promovendo a internalização do real e o desenvolvimento cognitivo.

Logo, o brincar da criança passa a ser uma transformação criadora, ela também tem a possibilidade de criar, mesmo sob diferentes escalas, mas cria a partir do que conhece e das oportunidades oferecidas, dentro de suas próprias necessidades e preferências. Dentro do jogo resgata-se na criança sua posição de sujeito histórico e social, pois ela cria, ela imagina, ela pode participar ativamente do processo lúdico.

 [...] a criança vê um objeto, mas age de maneira diferente em relação ao que vê. Assim, é alcançada uma condição em que começa a agir independentemente daquilo que vê. (VYGOTSKI, 1998, p. 127).

Portanto, os jogos e brincadeiras possuem papel fundamental para a formação da plasticidade cerebral através de processos criativos, que irão transformar qualitativamente as funções cerebrais.

Considerações Finais

O resgate dos elementos lúdicos através de atividades de jogos e de brincadeiras é de fundamental importância para o desenvolvimento pleno das crianças. O brincar é essencial para o desenvolvimento e para a vida da criança. A sociabilidade e a aprendizagem realizada de forma coletiva permitem a criação da Zona de Desenvolvimento Iminente (ZDI), onde os jogos e brincadeiras se constituem em elementos fundamentais para este processo de ensino e aprendizagem na infância. Portanto, mesmo em tempos de pandemia, sem as aulas presenciais em escolas ou creches, é possível a promoção do desenvolvimento e da aprendizagem infantil, onde o outro que brinca com a criança pode também ser o pai, a mãe, irmãos, ou seja, todos os indivíduos do seu lar ou mesmo grupo familiar. Vemos assim que as aulas presenciais nas escolas poderão ser postergadas até que se garanta completa segurança para o retorno das crianças, sendo substituídas por atividades lúdicas em casa e junto com os familiares. A atual pressão obstinada pelo retorno imediato à aulas presenciais por determinados grupos, visam apenas atender aos interesses de empresas da área educacional e também de donos de escolas particulares que colocam os lucros acima da vida dos alunos. Assistimos atualmente em pleno ápice da pandemia, a tentativa insana da imposição de uma normalidade impossível, e o funcionamento das escolas na forma presencial, assim como o retorno precoce das atividades esportivas, visam apenas a criação deste falso normal para a manutenção e continuidade da reprodução do capital, ao custo da saúde e da vida dos trabalhadores e dos filhos dos trabalhadores, caracterizando assim um verdadeiro extermínio de classe. Evidencia-se assim a urgência na superação deste atual modelo de mundo pautado na exploração, na exclusão, no individualismo e na destruição da natureza.

Referências

VYGOTSKY, L.S. A Formação Social da Mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

ZANELLA, A.V.; ANDRADA, E.G.C. Processos de Significação no Brincar: Problematizando a constituição do sujeito. Psicologia em Estudo, Maringá, v.07, n.02, p.127-133, jul/dez. 2002.