Quando não se deve iniciar as aulas presenciais durante a pandemia?

 


(Escrito por Renato Coelho)

No atual momento da pandemia no Brasil, com mais de 220 mil mortes (fevereiro de 2021), e quando a pandemia ainda se encontra totalmente fora de controle, um tema vem novamente ao debate: o retorno das aulas presenciais nas escolas do país. Segundo dados da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) são cerca de 44 milhões de estudantes fora das escolas somente no Brasil (OPAS, 2020). Ainda segundo dados da UNICEF são inúmeros os problemas mentais e psicológicos que podem afetar as crianças devido ao tempo prolongado de fechamento das escolas:


O fechamento das escolas tem impactos profundos na vida de crianças e adolescentes. Com o início da pandemia no Brasil, em março, estima-se que 44 milhões de estudantes ficaram longe das salas de aula. Tendo em vista as diferentes realidades brasileiras, as opções de atividades para a continuidade das aprendizagens em casa não estão se dando de forma igual para todos. Manter as escolas fechadas por muito tempo pode agravar ainda mais as desigualdades de aprendizagem no país, impactando em especial meninas e meninos em situação de vulnerabilidade (Bauer, F. apud OPAS (2020))

 

Sabe-se, no entanto, que a retomada das aulas presenciais, sejam em escolas, creches ou universidades depende exclusivamente do controle da pandemia no país, a fim de garantir a segurança do convívio entre alunos, professores e todos os familiares envolvidos. São evidentes os vários problemas psicológicos, emocionais e que também afetam o desenvolvimento das crianças e jovens pelo fato das escolas ainda estarem fechadas, porém, uma atitude irresponsável e insana seria autorizar o reinício das atividades presenciais em escolas no ápice de uma segunda onda da covid-19 no Brasil e agravado por uma nova mutação do vírus Sars-Cov-2 (B.1) encontrada primeiramente em Manaus, mas que já possui transmissão comunitária em praticamente todo o território nacional, cuja transmissibilidade é cerca de dez (10) vezes maior e as infecções produzidas mais graves do que as experimentadas pelas cepas de 2020.

É importante destacarmos, que antes mesmo de se iniciar a  discussão sobre o retorno das aulas presenciais no Brasil, se torna ainda mais urgente e imprescindível  para toda a sociedade, o debate pleno e aberto sobre a realidade do (des)controle da pandemia em todas as regiões do país, ou seja, o debate sobre a existência das políticas públicas de testagem em massa, sobre a eficácia e gestão do sistema nacional de vacinação, também sobre a importância da continuidade do auxílio emergencial, a distribuição de oxigênio medicinal nos hospitais, o aumento dos leitos de UTI, o aperfeiçoamento das políticas de isolamento social e de uma maior distribuição de renda durante a pandemia. Para o retorno das aulas presenciais é necessário antes o controle eficaz da pandemia, saber onde está o vírus dentro de cada região e cidades do território nacional, possuir mecanismos para mitigar surtos e novos contágios, estratégias de realização de testagem em massa e a universalização do atendimento hospitalar aos infectados. Porém, não é o que se observa atualmente no país, ao contrário, observamos uma obsessão pelo retorno imediato das aulas presenciais nas escolas brasileiras e pelas flexibilizações das regras de isolamento social, pressão essa reproduzida pelos secretários municipais e estaduais de educação, e cuja origem reside nos interesses comerciais e financeiros dos grandes proprietários de escolas privadas, que tiveram seus lucros subtraídos com a  pandemia e que agora pressionam os gestores públicos para a reabertura de todas as escolas, públicas e privadas ao mesmo tempo, independente dos estudos dos índices de transmissão do vírus sars-Cov-2 nas cidades, demonstrando assim, que a pandemia no Brasil (e no mundo todo) se transformou num verdadeiro extermínio de classe, onde os impactos e mortes atingem de forma desproporcional e seletiva as classes mais pobres que não possuem acesso a assistência médico hospitalar de qualidade.

É notória a importância das escolas no desenvolvimento e na aprendizagem de crianças, jovens e adolescentes. As atividades coletivas, as tarefas em grupo e as aglomerações infantis potencializam o desenvolvimento das chamadas funções psicológicas superiores nas crianças, como a memória, o raciocínio, a linguagem e a escrita. Porém, com o início da pandemia do novo coronavírus, a partir do primeiro semestre de 2020, as aulas presenciais em escolas e universidades em todo o país foram suspensas como medida de mitigação de novos contágios pelo vírus Sars-Cov-2. As aglomerações humanas são as principais causas de contágios da covid-19, e as escolas e as universidades possuem uma dinâmica pedagógica e também uma arquitetura própria que tem como objetivo promover e incentivar as aglomerações, já que as atividades em grupo são facilitadores da aprendizagem. A começar pela arquitetura das salas de aula com dezenas de carteiras organizadas em filas paralelas ou em círculos, a organização do pátio e as atividades do recreio são planejadas em função das interações e aglomerações das crianças, a fim de permitir maior interação e sociabilidade. Podemos ainda citar os restaurantes e os banheiros coletivos de escolas que também possuem uma arquitetura que favorece as interações humanas. Entretanto, devido à voraz dinâmica de contágios do vírus Sars-Cov-2, mesmo com o início da Campanha Nacional de Imunização (vacinação) no Brasil, mudanças estruturais profundas deverão ser realizadas dentro da educação escolar em todos os níveis e também na educação superior para a mitigação de novos contágios de Covid-19 e de suas variantes futuras. As mudanças necessárias serão não apenas referentes ao número de alunos por sala, mas também com mudanças estruturais que vão desde a arquitetura das escolas, na dinâmica de horários de funcionamento das aulas, na contratação de novos professores (concursos públicos), maiores investimentos na infraestrutura das escolas como acesso à internet, saneamento, ampliação de salas e na construção de banheiros, quadras, jardins e maiores áreas de lazer e de recreação.

Segundo Tokarnia (2020), em relação às condições atuais das escolas no Brasil em tempos de pandemia, apenas 46,7% possuem saneamento básico, ou seja, mais da metade das escolas do país não possui tratamento de esgoto, água encanada ou coleta de resíduos sólidos. Dentro desta pesquisa apenas 30% das escolas públicas e privadas no Brasil possuem áreas verdes, quadras e áreas de lazer.

Quando se fala sobre o quesito infraestrutura escolar, segundo o Censo Escolar 2017, nas escolas de ensino fundamental no Brasil apenas 65,8% das escolas públicas possuem água encanada (água potável), 46,8% possuem laboratório de informática, 65,6% têm acesso à internet e nas escolas de educação infantil apenas 61,1% possuem banheiro adequado à sua faixa etária. No que se refere às creches, apenas 57,6% possuem parque infantil e para a pré-escola essa porcentagem cai para 42,7%, e menos de 30% das creches e das pré-escolas possuem áreas verdes (MARTINS, 2018).

Essa realidade escolar brasileira é um entrave para a reabertura das escolas e para a flexibilização das atividades de aulas presenciais. Considerando tal contexto em que se insere a maioria das escolas no país, com destaque para a total falta de infraestrutura dos espaços escolares, haverá uma potencialização de novos contágios e de óbitos na reabertura de escolas, creches e universidades durante o período atual de crescimento da segunda onda no país, com altos índices de transmissão do vírus (Rt>1), provocando um aumento expressivo de contaminações e mortes por covid-19 entre os escolares e os seus familiares, agravando mais a espantosa realidade dos números da pandemia no Brasil.

Por que não se deve iniciar as aulas presenciais atualmente no Brasil?

Segundo dados do Centers for Disease Control and Prevention (CDC - https://www.cdc.gov/) sediado nos EUA, a retomada das atividades escolares na forma presencial somente deve ser recomendada quando o índice de transmissão do novo coronavírus estiver abaixo de 50 casos positivos novos (por dia) para cada um milhão de habitantes, pois essa taxa significa que o risco de transmissão do vírus seria baixo para um ambiente escolar e demonstrando também que a pandemia estaria realmente sob controle numa dada região que apresente estes números. Além disso, para a reabertura das escolas de forma segura, seria também necessário um decréscimo contínuo de no mínimo 4 semanas consecutivas nos índices de contágios e de óbitos numa determinada localidade ou município. Os leitos hospitalares de UTI´s para covid-19 também devem possuir um percentual baixo de ocupação (abaixo de 70%). Vemos assim que nenhuma cidade ou estado do Brasil se enquadraria nestes critérios mínimos de segurança para reabertura de escolas. Soma-se a esses dados da pandemia o alto estágio de precarização e de sucateamento em que se encontram atualmente as escolas e universidades públicas do país, que não possuem condições mínimas em promover a higiene e distanciamento dos alunos para prevenção de novos contágios. Portanto, o forte apelo para o retorno imediato das aulas deveria ser substituído pelo debate sobre maiores investimentos nas escolas, ampliação do número de salas de aulas, saneamento e instalação de água potável nas escolas, ampliação da oferta de internet gratuita aos estudantes, realização de novos concursos públicos para docentes e o fornecimento de auxílio financeiro às famílias dos estudantes de escolas públicas durante o período da pandemia.

 

Por que não se recomenda o retorno das aulas presenciais hoje?

No mundo moderno, as escolas são ambientes complexos e locais de aglomerações de pessoas. São espaços singulares e cuja dinâmica espacial e temporal segue uma lógica fordista de funcionamento, com crianças em filas, carteiras enfileiradas, corredores e salas dispostos também de forma linear, reproduzindo um ambiente fabril. O advento da pandemia do vírus Sars-Cov-2 colocou em xeque a retomada das aulas presenciais nas escolas e obrigou a sua continuidade no chamado Ensino à Distância (EaD), de forma excludente e com todas as já conhecidas limitações das aulas virtuais.

Segundo uma recente pesquisa realizada pela Universidade de Granada (UGR) na Espanha sobre a retomada das aulas presenciais naquele país nos trazem números e fatos importantes sobre as relações entre a dinâmica de interações das escolas e o comportamento do vírus Sars-Cov-2 (ARROYO, 2020).

Segundo os pesquisadores da Universidade de Granada, considerando a realidade espanhola, de uma sala de aula com vinte (20) crianças, sendo que as famílias destas crianças escolares são constituídas pelo pai, mãe com um (1) ou dois (2) filhos (nesta simulação do cálculo considera-se que metade dos alunos tenham um irmão que também estuda na mesma escola e a outra metade é composta por crianças consideradas “filho único”). Ao se considerar todos os contatos realizados por uma única criança, apenas no seu primeiro dia de aula, e sem considerar os contatos externos à escola (rua, mercado, ônibus, etc.) será contabilizado 74 contatos com outras pessoas da escola, ou seja, cada criança da escola será exposta a outras 74 pessoas no seu primeiro dia de aula, considerado apenas os contatos exclusivos com sujeitos da sala de aula e da família (ver Figura 01 abaixo).


Figura 01 – Esquema do número total de contatos entre alunos de uma mesma escola.


Para o segundo dia de aula, desconsiderando as regras de distanciamento social, os contatos sobem para 808 interações para cada aluno da classe. Já para o terceiro dia as interações serão de 15.000 para cada aluno. Os números comprovam o grande risco de uma criança da sala estiver infectada com a Covid-19, elevando o grau de contaminação para toda a escola. A partir daí, pode-se ter uma noção dos riscos em se abrir as escolas em período de pandemia, pois é colocado em risco nesta situação, não somente a saúde mental das crianças ou o seu futuro desenvolvimento, mas acima de tudo a própria vida da criança é colocada em risco, principalmente em um retorno às aulas presenciais num momento de alta de casos e de contágios, e ainda com um retorno de forma pragmática e sem planejamento como estamos presenciando.


Tabela 01 – Número de interações entre alunos durante os primeiros dias de aulas presenciais na escola

Imaginemos então como se daria a replicação destes contatos diários nas escolas brasileiras, onde a massificação de turmas, com médias superiores a 40 alunos por sala, a falta de professores concursados, salas pequenas e com pouca ventilação, banheiros inadequados e sem água potável em muitas escolas do país. Obviamente que as escolas se tornariam assim espaços denominados de super-espalhadores, com potencial aumento de surtos e de contágios pelo novo coronavírus.

Mesmo havendo o uso de máscaras e com as regras de distanciamento social dentro das escolas, não é recomendado o retorno das aulas presenciais quando houver alta de contágios numa cidade, região ou país (Rt>1), pois todos os protocolos de biossegurança neste contexto se tornam ineficazes. Quando se vivencia um momento de alta de contágios e de óbitos, não há outra alternativa, a não ser o isolamento social e a suspensão completa das aulas presenciais. A sugestão é priorizar a vida dos escolares e não as aulas em si, pois o retorno seguro das aulas presenciais no Brasil se dará somente após a efetivação da Campanha Nacional de Imunização (vacinação), já que não temos políticas públicas de mitigação de contágios como testagem em massa, rastreamento de novos conatos, ampliação de leitos de UTI’s e de atendimento médico hospitalar de qualidade para toda a população.

 

Bibliografia Consultada

ARROYO, J. Colocar 20 crianças numa sala de aula implica em 808 contatos cruzados em dois dias, alerta universidade. Jornal EL PAÍS, jun. 2020.  Disponível em: < https://brasil.elpais.com/sociedade/2020-06-17/colocar-20-criancas-numa-sala-de-aula-implica-em-808-contatos-cruzados-em-dois-dias-alerta-universidade.html>. Acesso em:03/02/21.

MARTINS, H. Censo aponta que escolas públicas ainda têm deficiências de infraestrutura. Agência Brasil EBC, 2018. Disponível em: < https://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2018-01/censo-aponta-que-escolas-publicas-ainda-tem-deficiencias-de-infraestrutura>. Acesso em: 03/02/21.

OBSERVATÓRIO COVID-19 BR. Experiência internacional na reabertura de escolas e situação no Brasil: porque não podemos fazer comparações diretas.Set, 2020. Disponível em: < https://covid19br.github.io/analises.html?aba=aba12#>. Acesso em: 03/02/21.

ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DA SAÚDE (OPAS). Reabertura segura das escolas deve ser prioridade, alertam UNICEF, UNESCO e OPAS/OMS. Set, 2020. Disponível em: < https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=6283:reabertura-segura-das-escolas-deve-ser-prioridade-alertam-unicef-unesco-e-opas-oms&Itemid=812>. Acesso em: 03/02/21

TOKARNIA, M. Quase metade das escolas não tem todos os itens de saneamento básico. Agência Brasil EBC, 2020. Disponível em: < https://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2020-06/quase-metade-das-escolas-nao-tem-todos-os-itens-de-saneamento-basico>. Acesso em: 03/02/21.