A Educação Física e o retorno presencial das aulas: pandemia ou sindemia?


 

(Escrito por Renato Coelho)

  

A covid-19 já não é apenas uma pandemia, mas já possui uma nova classificação denominada de sindemia, e não consiste apenas em uma mera mudança terminológica. O termo SINDEMIA é um neologismo que deriva da junção das palavras SINERGIA + PANDEMIA, e foi criado pelo antropólogo americano Merill Singer ainda na década de 1990, onde, segundo ele:

 

Uma abordagem sindêmica fornece uma orientação muito diferente para a medicina clínica e a saúde pública, mostrando como uma abordagem integrada para entender e tratar doenças pode ser muito mais bem sucedida do que simplesmente controlar doenças epidêmicas ou tratar pacientes individuais (SINGER apud HORTON, 2020).

 

 

O conceito de sindemia lança um novo olhar sobre a covid-19, onde são levados em conta o contexto da doença e as interações com os aspectos sociais, fazendo com que a covid-19 não seja considerada apenas como uma doença a nível biológico. Ao considerarmos a Covid-19 como uma relação biológica e social, fica mais fácil a compreensão de sua dinâmica de contágios, também a tomada de decisões eficazes para mitigação de novos surtos.


Foto 02 – Vacinação de trabalhadores contra a Varíola – Maranhão – 1969. (fonte: Acervo COC - Casa Oswaldo Cruz – Fiocruz)

 

A covid-19 é capaz de interagir com inúmeras doenças pré-existentes, tais como diabetes, cardiopatias, doenças respiratórias crônicas, doenças renais, hipertensão, asma, câncer, aids e muitas outras, porém, essas interações ou combinações, fazem potencializar os danos e riscos à vida dos indivíduos com tais comorbidades. Vale ressaltar ainda que em camadas mais pobres e em etnias excluídas ou marginalizadas, os danos provocados pela sindemia da Covid-19 também são amplificados de forma exponencial. Fatores de risco para a Covid-19, tais como a obesidade e diabetes são mais frequentes em populações mais pobres e carentes, e tais fatores tornam estas pessoas mais vulneráveis, favorecendo a piora do estado de saúde destes indivíduos, pertencentes aos chamados grupos de risco.

 

A vulnerabilidade dos cidadãos mais velhos; comunidades étnicas negras, asiáticas e minoritárias; e os trabalhadores-chave que são comumente mal pagos com menos proteções de bem-estar apontam para uma verdade até agora pouco reconhecida — ou seja, que não importa o quão eficaz um tratamento ou proteção através de uma vacina, a busca de uma solução puramente biomédica para o COVID-19 falhará. A menos que os governos criem políticas e programas para reverter profundas disparidades, nossas sociedades nunca serão verdadeiramente seguras contra a covid-19. (HORTON, 2020)

 

 

 

Segundo Horton (2020), a Covid-19 jamais será debelada apenas com a visão biomédica de restrições ou de flexibilizações da mobilidade humana, protocolos de biossegurança, vacinas ou de medicamentos de última geração,  pois nunca serão eficazes o suficiente e a busca de soluções meramente biologicistas para a Covid-19 sempre fracassarão. Para este autor, é necessário ir muito além disso, para ele, é urgente e necessário a superação da mera visão atual focada no limitado conceito de pandemia, e começarmos a encarar a covid-19 como uma sindemia, sendo capaz de levar em conta as condições de trabalho, moradia, alimentação de qualidade, saneamento básico, acesso ao lazer e ao esporte, assistência médica e melhoria na renda dos trabalhadores de todo o mundo.

 

A crise econômica que se aproxima de nós não será resolvida com um medicamento ou uma vacina.  Nada menos do que um avivamento nacional é necessário. Abordar a Covid-19 como uma sindemia irá convidar a uma visão mais ampla, abrangendo educação, emprego, moradia, alimentação e meio ambiente. Ver a Covid-19 apenas como uma pandemia exclui esse processo mais amplo, mas necessário. (HORTON, 2020)

 

 

Portanto, faz-se necessário propor medidas para além das ações farmacológicas (vacinas, medicamentos) e não farmacológicas (uso de máscaras, protocolos, distanciamento social, lockdown), quesitos estes que são fundamentais, porém, não suficientes para o controle e mitigação dos contágios e mortes provocados pela covid-19 no Brasil e no mundo.


Figura 01 – Charge com Oswaldo Cruz e a Revolta da Vacina – 1904 (fonte: Acervo COC - Casa Oswaldo Cruz – Fiocruz)

  

No Brasil, por exemplo, enquanto avança lentamente o programa de vacinação da população brasileira (cerca de 60% da população adulta totalmente imunizada) com uma média de 1,5 a 2 milhões de doses aplicadas diariamente, vemos em paralelo a aniquilação de direitos trabalhistas pelo congresso, a votação de leis contra os direitos indígenas, o aumento da inflação e do desemprego estrutural, também o aumento de queimadas e desmatamentos na Amazônia, no Cerrado e Pantanal, que são considerados os principais biomas do planeta Terra.

Sendo assim, mais distante se torna o controle da covid-19 e a diminuição dos contágios. Não apenas isso, estamos abrindo as portas para o surgimento de novas pandemias com a destruição da natureza e o aumento das desigualdades sociais. Tais mazelas e sindemias são consequências claras do insaciável e destrutível movimento capitalista sobre a natureza e sobre a vida humana.

Cumpre aqui ressaltar o importante papel da educação física, como instrumento de democratização da cultura corporal e como importante componente curricular das escolas brasileiras. Porém, neste momento de pandemia, com um vírus mutante e que inviabiliza a construção da imunidade coletiva através da vacinação (variante delta), onde medidas de restrições de mobilidade, o uso de máscaras e aplicações de reforços vacinais deverão perdurar por tempo indeterminado, deve-se repensar as metodologias, conteúdos e espaços de educação física para além das medidas e normas biomédicas e dos protocolos de segurança, através de ações concretas que abarquem mudanças estruturais para viabilização das diferentes e variadas formas de ensino-aprendizagem em educação física, a fim de promover a segurança e a saúde de alunos, professores e de seus familiares, colocando como prioridade a proteção à vida de todos os membros da sociedade.

O ensino da Educação Física envolve inúmeros contatos, ensinar e aprender Educação Física é promover aglomerações saudáveis e infinitas interações humanas de variadas formas:  dialógicas, psicológicas, físicas e simbólicas. A Educação Física é não somente o momento de aula, mas tempo de prazer e de libertação corporal das amarras e engessamentos promovidos pela instituições educacionais. Daí o grande entrave que a pandemia trás para a Educação Física como um todo, e também para colégios, academias e escolas de natação. Um problema complexo que não será solucionado apenas com protocolos de biossegurança em quadras de escolas, piscinas ou em academias de ginástica.


Foto 03 - Espaço de lazer ao ar livre localizado no bairro de Vila Nova em Goiânia

 

Tais ações e empreendimentos nas aulas de Educação Física envolvem melhoria e democratização no acesso à internet para alunos e professores, realização de concursos públicos para docentes de escolas e universidades na expansão do ensino remoto (por tempo indeterminado), aumento de salário e melhorias nos planos de carreira e previdenciário docente, expansão da assistência estudantil e concessão de mais bolsas (permanência, extensão e de pesquisa), readequação e reformas dos espaços escolares e de universidades para melhor circulação do ar (ventilação natural e troca de ar) e ampliação de áreas já construídas. Permitir o acesso à assistência médico hospitalar gratuita e de qualidade para a comunidade escolar, garantir uma alimentação saudável e rica em nutrientes aos professores e estudantes, também a promoção de moradia digna e saneamento básico às famílias de estudantes mais carentes.

Portanto, não basta apenas impor às escolas protocolos, ou normas de biossegurança nas aulas de educação física pautados apenas em normas epidemiológicas, que não são capazes de oferecer uma proteção efetiva, quando construídas e impostas de forma a negar o contexto e negligenciar as desigualdades e mazelas sociais estanques na comunidade escolar e nas universidades brasileiras. 

Com base no exposto acima e no contexto atual brasileiro de vacinação lenta e com início tardio, uma iminente terceira onda de contágios já é cogitada, e somado com a real e brutal precarização das escolas e universidades públicas, o retorno às atividades presenciais irá requerer não somente somente a ampliação da cobertura vacinal, que apesar de ser importante e fundamental, não será capaz de sozinha colocar fim à pandemia, como vemos ocorrer atualmente na Europa com o novo aumento exponencial de casos.

 

 

 

Referências

 

HORTON, R. OFFLINE: COVID-19 is not a pandemic. The Lancet, v.396, p874, september 26, 2020.

Site Consultado: 

Casa Oswaldo Cruz: www.coc.fiocruz.br/index.php/pt/