O Falso Normal: os esportes na pandemia

         Nadadores brasileiros treinam em Portugal para primeiro torneio durante a pandemia


(Escrito por Renato Coelho)

Sempre governos de diferentes países e em diversas épocas utilizaram os esportes como instrumento ideológico e de manipulação da população. E nestes tempos tenebrosos de pandemia não tem sido diferente. As velhas e demagógicas políticas de controle estão sendo constantemente utilizadas por governos, instituições e também pela grande mídia no sentido de forçar as pessoas a acreditarem que mesmo em um contexto de pandemia, com as curvas ascendentes de mortes e de contágios pelo novo coronavirus no Brasil, que a vida pode simplesmente seguir nos antigos padrões da normalidade social, com viagens, passeios em shoppings centers, finais de semana na praia, matinês no cinema, barzinhos com os amigos, e ainda que à noite podemos em casa torcer pelo time do coração nos campeonatos nacionais transmitidos pela TV. Esse bombardeio constante de propaganda da falsa normalidade atinge a todos e colabora com a necropolítica do Estado brasileiro em transformar a curva exponencial da pandemia no Brasil na mais alta e longa do mundo, sob um platô com uma média móvel de 900 a 1000 mortes diárias. Os números e a matemática ratificam que a vida não segue nada de normal.

O esporte a partir do século XX se transforma em espetáculo midiático e em megaevento de entretenimento de bilhões de espectadores em todo o mundo. O esporte mercadoria se transforma em produto de consumo e é ofertado não mais como exercício físico, promoção de bem estar ou prática de lazer, mas é transformado  tão somente em objeto de contemplação e de fethiche. O sujeito que antes praticava o esporte e também o próprio esporte se transformam em objetos reificados pelo capital. O outrora ativo praticante e desportista do dia a dia  ou aquele torcedor apaixonado pelo seu time e frequentador dos estádios desaparecem no mundo do esporte espetáculo moderno e passam a dar lugar ao consumidor passivo do entretenimento esportes, transformado num mero sujeito inerte e que apenas contempla virtualmente o esporte espetáculo globalizado, que se transformou apenas em uma imagem a ser vendida e consumida. Nessa metamorfose para se enquadrar no processo de fetichização capitalista, o esporte não apenas se transforma em mais uma mercadoria, mas também perde seus significados, seus símbolos, regras e tradições. Nesse processo de mercadorização e de aniquilamento dos sentidos dos esportes, ocorre o empobrecimento e a perda dos seus elementos constitutivos e essenciais que o ligam a estética, a arte, ao popular e à história humana.

Mas o esporte não é hoje uma mercadoria qualquer, mas sim uma mercadoria singular e que movimenta uma cifra de bilhões de dólares no mundo. E além de produzir uma escala astronômica de lucros aos seus patrocinadores, os esportes possuem também um capital político e ideológico incomparáveis. Um exemplo marcante dos esportes como instrumento ideológico foi demonstrado durante o período da chamada Guerra Fria, quando da polarização do mundo entre a antiga União Soviética (ex-URSS) e os EUA, que dividiu o planeta entre países capitalistas  apoiados e liderados pelos EUA e os países do bloco comunista, ligado à antiga União Soviética. Durante este período as olímpiadas se transformaram em palco de disputas hegemônicas entre atletas do mundo capitalista versus atletas do mundo comunista. Nestas disputas, no entanto, o “fair play” nunca existiu, pois eram constantes e comuns os escândalos com doping envolvendo atletas de ambos os lados e que utilizavam esteróides anabolizantes e outros fármacos para alcançarem o pódio e as cobiçadas medalhas olímpicas.

Nos países da América Latina não foi diferente o uso dos esportes por governos e regimes ditatoriais, sempre houveram ações estatais que transformaram os esportes em bandeira de propaganda de representantes políticos ou de partidos. Na Argentina de Perón ao Brasil de Vargas, sempre se soube do grande poder, do fascínio, do êxtase e da admiração provocados pelos esportes, em especial do futebol, sobre a maior parte da população latino americana.

Durante o período das ditaduras militares na América do Sul, houveram casos emblemáticos e históricos onde o Estado se utilizou do esporte para promoção e propaganda de seus ideais e valores autoritários e repressivos, sob o falso manto do triunfalismo, da eficiência, do mérito e da sobrepujança, que são as características principais do esporte. E mais ainda, aqueles que conseguiam alcançar o mérito de serem os mais rápidos, mais velozes e que iam mais alto ou mais longe nos esportes, eram então convocados a se transformarem  em "garotos propaganda" da máquina  de publicidade  oficial do Estado.

A ditadura militar comandada por Jorge Videla na Argentina utilizou a Copa do Mundo de 1978 como propaganda do regime ditatorial para o mundo, tentando esconder as mazelas sociais do país, a pobreza e a violência estatal contra a os opositores ao regime. A Argentina que era sede da Copa do Mundo FIFA de Futebol em 1978 aumenta a violência e a repressão aos opositores no país durante o período da Copa. Enquanto a bola rolava nos gramados argentinos, milhares de pessoas passavam fome nos subúrbios das grandes cidades devido à miséria no país ou eram presas, torturadas e mortas pela polícia argentina.  Mas a propaganda de Videla tentava passar ao mundo a visão de uma outra Argentina, bem diferente daquela que se via nas ruas de Buenos Aires ou nos porões da polícia por todo o país. A propaganda estatal era a Argentina  como sendo o país do futebol  e do triunfo da seleção de Passarela, campeã do mundo em 1978. Mas, para se chegar à final da copa e ao título, o governo Argentino promoveu várias intervenções junto à Fifa e também na escancarada manipulação de jogos que beneficiaram o time anfitrião. Um jogo bastante emblemático foi entre Argentina e Peru durante as semi-finais, onde a seleção Argentina necessitava vencer a equipe adversária peruana com um placar de 4 gols de diferença para avançar à próxima fase, e assim também eliminar a seleção do Brasil daquela Copa. Com visita do general Videla ao vestiário da seleção peruana antes e após o jogo contra a Argentina, o placar final de 6 X 0 a favor da Argentina, fez a mesma avançar à final e disputar o título contra a Holanda.

No Chile, da mesma forma o ditador Augusto Pinochet, passa a promover intervenções e apoiar o Colo Colo, o time mais  famoso e popular da época e que formava a base da seleção chilena. Com o objetivo também de tentar desviar a atenção da população chilena e do mundo das barbáries, atrocidades e genocídios promovidos pela ditadura chilena aos seus opositores, o governo do ditador  Pinochet se utiliza do futebol como instrumento de controle e para mascarar a realidade. O Estádio Nacional do Chile em Santiago se tornou na época em um dos maiores símbolos da cruel ditadura chilena. Este famoso e importante estádio de futebol serviu de local de prisão e tortura para milhares de simpatizantes e apoiadores do governo deposto de Salvador Allende. Milhares de chilenos foram assassinados pela ditadura de Pinochet  dentro do Estádio Nacional do Chile. Um jogo que não aconteceu, mas que entrou para a história do futebol mundial foi nas eliminatórias para a copa do mundo de 1974 na Alemanha, onde a seleção chilena deveria enfrentar a seleção da antiga União Soviética no próprio Estádio Nacional em Santiago, mas o time russo se recusou a entrar em campo em protesto contra a ditadura de Pinochet e então a seleção do Chile entra no estádio sem o time adversário e vence o jogo por W.O, se classificando com o Estádio lotado com mais de 20 mil torcedores, mas que não assistiram a jogo nenhum.

No Brasil podemos citar também vários momentos sobre a utilização dos eventos  esportivos como instrumento ideológico e de manipulação, que vão desde  os governos de Getúlio Vargas, passando pelos militares pós 1964 e indo até os governos atuais.

Um dos episódios mais emblemáticos e marcantes da história do futebol no Brasil, e sobre a  ideologização do maior esporte nacional, ocorreu em 1970 na disputa da Copa do Mundo do México, onde a seleção comandada por Pelé & Cia, considerada a maior seleção de futebol de todos os tempos, se transformou na maior e mais poderosa bandeira de propaganda política da ditadura militar brasileira. Enquanto milhares de brasileiros, que se opunham à ditadura, eram torturados e mortos nos porões das delegacias policiais, o governo exaltava e patrocinava a chamada seleção canarinho que se consagrou tricampeã no México em 1970. A propaganda estatal sobre a seleção de Pelé não somente tentava passar uma boa imagem do Brasil no exterior, assim como também conseguia desviar o foco da população brasileira das questões importantes e ligadas à fome, à miséria , às injustiças sociais e sobretudo com relação à violência e repressão institucionalizada do regime contra os próprios brasileiros. O futebol também ajudou a vender mais tarde a propaganda do “milagre brasileiro” referente ao crescimento artificial da economia e promoveu dentro e fora do país a falsa imagem criada pelos militares do regime caracterizado pelo slogan “Brasil Potência” e “Brasil, País do futuro”.

Nos governos do PT, de Lula e Dilma, (2002-2016) mais uma vez se gastou muita energia e volumosas quantias em dinheiro para transformar o país na sede dos dois  maiores megaeventos  esportivos do planeta, a Copa do Mundo Fifa 2014 e Olimpíadas Rio 2016. O grande êxtase e o entusiasmo em sediar os megaeventos mais importantes do esporte moderno, contribuíram também para desviar o foco e a atenção da população brasileira da sua realidade, camuflando os problemas sociais e servindo de capital politico para o governo. Porém, os gastos astronômicos com a construção das chamadas Arenas de futebol, que ultrapassaram os 30 bilhões de reais (somente o estádio Mané Garrincha em Brasília custou cerca de 1,8 bilhão, e foi considerado na época o estádio mais caro do planeta). Os gastos com as Olímpiadas do Rio em 2016 ultrapassaram os gastos com a copa do mundo de 2014, chegando a cifra de 40 bilhões de reais. Os altos gastos com os megaeventos, as constantes denúncias de corrupções envolvendo os megaeventos esportivos e em contrapartida  a falta de investimentos em infra-estruturas ligadas à saúde, educação, saneamento e geração de empregos, e entre outros fatores importantes ,ajudaram a derrubar a popularidade do governo liderado pelo partido dos trabalhadores, culminando com o impeachment da presidenta Dilma Roussef em 2016.

Hoje, durante a pandemia do novo coronavirus e o governo de Jair Bolsonaro, também podemos observar a velha estratégia de se utilizar o esporte como propaganda na criação de uma falsa normalidade, com as mesmas estratégias e mecanismos adotados por governos anteriores, desde Vargas, passando pelos governos da ditadura militar pós 1964 e pelos governos do PT a partir da década de 2000. Os novos tempos e as velhas políticas em ação.

A partir de agosto de 2020, ainda quando se observava grande aumento nas curvas de contágios e de mortes pelo novo coronavirus em todo o país, houve o reinício do campeonato brasileiro de futebol e também dos campeonatos estaduais, resultado da pressão dos grandes times de futebol e pela própria CBF, e estes por sua vez reproduziam os discursos e as pressões do próprio presidente da República Jair Bolsonaro a favor da reabertura precoce da economia e da volta à "normalidade". Mesmo sem público nos estádios, foram criados vários protocolos sanitários para evitar o contágio entre atletas e pela comissão técnica. Mas o que assistimos foram vários episódios de surtos da covid-19 entre vários times do Brasil, inclusive do Goiás E.C e também do Atlético Goianiense, ambos times pertencentes à capital goiana. E no último dia 22 de setembro o time com a maior torcida do Brasil, o famoso Flamengo, testou 27 pessoas contaminadas, entre atletas, comissão técnica e cartolas, em viagem à cidade de Guayaquil no Equador pela disputa da copa Libertadores da América. O time que mais pressionou as autoridades para o reinício dos jogos durante a pandemia, tem praticamente quase todo o time e o próprio técnico contaminados pelo vírus Sars-Cov-2, provando que o reinício do futebol foi uma decisão precoce e insensata, e que não existe protocolo seguro quando a fase de transmissão do vírus é acelerada e ascendente.

Como se não bastasse, existe hoje no Brasil uma forte pressão de clubes sobre a CBF no intuito de liberar a participação de torcedores nos estádios durante a pandemia. Esse movimento também é encabeçado pelo time do Flamengo, cuja diretoria apoia o presidente da República, exigindo a abertura dos portões e das bilheterias aos torcedores. O prefeito do Rio de Janeiro, de olho nas eleições municipais de novembro próximo cedeu à pressão e aprovou a reabertura do Maracanã aos torcedores. Mas com a revolta de outros dirigentes de clubes importantes que não concordam com a reabertura apenas do Maracanã, a prefeitura carioca e o Flamengo voltaram atrás, aos menos por enquanto.

O que está de fato por detrás da volta do futebol e também das torcidas  nos estádios em pleno aumento de casos na pandemia? Hoje o país contabiliza cerca de 140 mil mortos pela covid-19 e várias cidades, como Goiânia, experimentam atualmente o pico de casos e de mortes na pandemia. Essa chamada necropolítica que promove o genocídio de brasileiros em todos os estados da federação, representa a tentativa desesperada e pragmática dos governos do país em criar uma falsa normalidade (alguns denominam de “novo normal”), onde o esporte e principalmente o futebol pode ser capaz de criar no imaginário das pessoas a falsa sensação de que a vida voltou a ser como antes, que podemos sair de casa e trabalhar como se a pandemia já estivesse terminado.  Mas é o contrário, a pandemia está em sua fase mais letal e veloz, ceifando milhares de vidas a cada instante. Uma tentativa desesperada em querer recuperar as perdas da economia pela pandemia em um país onde o governo usa o discurso negacionista e se isenta na criação de políticas públicas de mitigação dos contágios, faz então multiplicarem as tentativas e as propagandas de um falso normal, onde as pessoas possam voltar logo a consumir e se divertirem mesmo com um vírus desconhecido, letal e sem controle nas ruas. E o esporte se torna mais uma vez este instrumento de criação da normalidade impossível, tal qual nas ditaduras da América Latina ou como os já citados megaeventos dos governos do PT no Brasil.

A grande verdade, todos já sabem, para se controlar uma pandemia em um país pobre como o Brasil requer grandes investimentos que garantam a manutenção financeira das famílias de todos os trabalhadores e dos mais pobres e vulneráveis, também a criação de políticas públicas coordenadas na área da saúde capazes de promover a testagem em massa, o rastreamento em massa, o isolamento em massa e o tratamento de todos os contaminados do país, sejam os casos mais graves ou assintomáticos. Porém, nenhuma destas ações estão sendo colocadas em práticas no Brasil, daí a escolha pelos governantes pelo caminho mais fácil em colocar o trabalhador dentro dos estádios ou em frente da TV para assistir o seu time do coração em plena pandemia. Neste atalho que estamos trilhando e que se utiliza dos esportes como anestésico para uma população em pânico e à beira de uma revolta por causa dos prejuízos e do aumento da miséria provocado pela pandemia poderá levar o país ao abismo de uma pandemia que deverá durar anos e levar a economia aos frangalhos e a saúde pública ao colapso. Essa é a velha estratégia dos governos e do Estado para se criar o falso normal, porém o desemprego, a fome e a morte não são falsas, mas são muito reais.