Gráfico 01 - Média Móvel de Mortes em Goiás |
(Escrito por Renato Coelho)
Existe uma antiga lenda sobre
a origem do jogo de xadrez, chamada de “a lenda de Sissa”. Reza a lenda que um sábio
chamado Sissa, após criar o jogo de xadrez e ensinar o rei hindu a jogar este
jogo de tabuleiro, fez um desafio ao rei como resposta à proposta que o mesmo
lhe fizera, em lhe dar qualquer coisa que pedisse. Então Sissa lhe pediu que
colocasse um pequeno grão de trigo no primeiro quadrado do tabuleiro, e em
seguida o dobro de sementes de trigo no segundo quadrado, e após isso, o dobro
de sementes de trigo no terceiro, e novamente no quarto quadrado, o dobro de
sementes colocado antes, e assim sucessivamente até que se chegasse ao 64º e
último quadrado do tabuleiro de xadrez. O rei achou o pedido muito singelo e
zombou de Sissa, solicitando que os seus servos fizessem os cálculos e então entregassem
as sementes à Sissa. Entretanto, após os servos reais consultarem os matemáticos
da corte, ficaram totalmente espantados e perplexos, e foram correndo procurar
o rei. Ao chegarem diante do rei, mostraram os números à sua alteza e
explicaram que nem todo o ouro e nem todos os tesouros reais seriam suficientes
para pagar o pedido de Sissa.
Na verdade, o pedido de Sissa obedecia
a uma função exponencial, também conhecida como progressão geométrica, onde a
quantidade de trigo sempre dobra de um quadrado para o outro. No primeiro
quadrado: uma semente de trigo, no 2º quadrado: 2 sementes, no 3º deveria ser
colocado 4 sementes, no 4º mais 8 sementes, no 5º a quantidade de 16 sementes e
assim sucessivamente até o 64º quadrado final do tabuleiro. É uma progressão
geométrica de ordem 2 (R=2), ou seja, ela dobra a cada nova contagem. E utilizando
a fórmula matemática para uma progressão geométrica (An = ao x
Rn-1) chegamos à quantidade de sementes de trigo suficiente para
preencher todo o tabuleiro de xadrez e pagar Sissa: 18.446.744.073.709.551.615
sementes de trigo. Ou seja, a quantia de sementes era impagável e impossível de
ser cultivada, pois a superfície inteira do planeta Terra não seria suficiente
para o plantio, e ainda, nem se quer haveria local suficiente no planeta para
armazenar e guardar toda a quantidade final de sementes.
Vemos através da lenda de
Sissa o poder de crescimento das funções exponenciais, mas não precisamos ser
exímios matemáticos ou doutores em epidemiologia para compreender o crescimento
vertiginoso de contágios e de óbitos provocados pela covid-19 em Goiás, pois
somente a matemática ou a biologia não são suficientes para explicarem estes
tristes números. As transmissões do novo coronavirus seguem a matemática de Sissa,
ou seja, as funções exponencias e foi por isso que em apenas três meses a
covid-19 atingiu a todos os países do planeta Terra. A matemática de crescimento
da doença respiratória Covid-19 segue a mesma lógica dos grãos de trigo no tabuleiro
de xadrez, porém, a velocidade das transmissões depende de várias variáveis,
como veremos a seguir, podendo ser assim aceleradas ou freadas.
Segundo os dados oficiais, a
transmissão comunitária do vírus Sars-Cov-2 em Goiás se iniciou em março de
2020 e a primeira morte pela covid-19 se deu no dia 28 de março na região do
entorno de Brasília. No entanto, ainda no dia 9 de fevereiro, o Estado de Goiás
teve uma importante experiência com relação à pandemia, quando a Base Aérea de
Anápolis serviu de local de quarentena para 34 brasileiros que foram
repatriados de Wuhan na China, onde permaneceram por 14 dias em Anápolis e
fornecendo uma aprendizagem relevante sobre o comportamento e as precauções com
relação ao vírus transmissor da covid-19. Além desta oportunidade ímpar de
estudar e conhecer melhor o vírus com a primeira quarentena de covid-19 no
Brasil realizada na cidade de Anápolis, o Estado de Goiás, assim como todos os demais
Estados da região Centro Oeste e Sul do país, foram as últimas regiões do
Brasil a serem impactadas fortemente pela pandemia do novo coronavirus, o que
forneceu mais tempo para uma melhor preparação e implementação de políticas
públicas de mitigação de contágios e para tratamento de doentes, porém, não foi
nada disso o que se viu de fato. E em virtude das questões geopolíticas do
Estado de Goiás, que fica numa região mais central, interiorana e menos
populosa do país, com aeroportos de baixo fluxo aéreo, houve realmente um certo
retardo na chegada da crise provocada pela pandemia em relação ao restante do
país (regiões sudeste, norte e nordeste). Todos esses elementos juntos,
teoricamente falando, deveriam ser fatores positivos no combate e mitigação de
contágios do novo coronavirus em Goiás, pois permitiu maior tempo hábil para os
gestores e políticos planejarem melhor as ações no combate à pandemia e
consequentemente para a diminuição de
vítimas fatais. Entretanto, nada disso aconteceu. Goiás chega hoje a um triste
e absurdo número de mortes, cujo quantitativo atual já ultrapassa o valor de 5.444
óbitos de pessoas vítimas da covid-19, e alcançando também uma taxa de
letalidade de 2,26%. A taxa de letalidade de 2,26% é considerada altíssima,
significa que a cada 100 pessoas contaminadas, mais de duas delas vem a óbito.
Segundo o jornal “O Popular” de 28 de setembro de 2020, somente até o mês de
agosto, 136 pessoas morreram na fila por UTI, por falta de leitos em Goiás. São
números assustadores e demonstram mais uma vez que a letalidade poderia ser
muito mais baixa, caso as pessoas tivessem de fato atendimento
médico-hospitalar adequado e ainda houvesse existido uma verdadeira política de
mitigação de contágios em Goiás com testagem em massa, rastreio de contatos e
isolamento das vítimas.
No gráfico 01 com a curva
exponencial acima, podemos acompanhar a cronologia das transmissões da Covid-19
e o número diário de óbitos em Goiás. Vemos que as transmissões comunitárias
foram registradas oficialmente após o carnaval na primeira quinzena de março e
a primeira morte registrada foi em 26 de março, provando que o vírus já estava
circulando em Goiás ainda em março ou até mesmo antes desta data. Já no dia 13
de março o governo de Goiás divulga o Decreto N. 9633 que impõe a situação de Emergência
em Saúde Pública, promovendo a quarentena em Goiás com proibição de
funcionamento de várias atividades econômicas no Estado, inclusive bares, cinemas,
restaurantes, academias, escolas e universidades. O isolamento social dura
cerca de duas semanas, porém sem a realização de testagem em massa da população
e sem o rastreamento dos contatos. Torna-se evidente que não se pode controlar
a pandemia somente com quarentena, isolamento social ou lockdown, em paralelo e
de forma contínua ao isolamento social, é também necessário a realização da
testagem em massa com rastreio de contatos e atendimento hospitalar aos
infectados. Porém, apesar do isolamento ter sido realizado no momento certo, no
início da transmissão comunitária, não houve testagem em massa para mitigação
dos contágios e a consequência todos nós já conhecemos, houve apenas o
retardamento do pico de transmissões, onde a crise de contágios foi apenas postergada
por mais algumas semanas, “empurrando” o pico de contágios para a segunda
semana de agosto, com colapso na rede hospitalar e 100% de ocupação de UTI’s
nesse período. E ainda hoje, no final de outubro de 2020, não existe em Goiás
uma política pública robusta e eficaz de testagem em massa, ficando os números
de testes muito abaixo do recomendado, daí o verdadeiro motivo do número
altíssimo de subnotificações, e o vírus ainda permanecer fora de controle em Goiás
e também no Brasil.
Ainda conforme o Gráfico 01, o
governo de Goiás, por pressão dos setores empresariais e financeiros inicia uma
agenda de flexibilizações ainda no mês de abril com funcionamento de feiras livres
e até de igrejas. Naquele momento já eram computados cerca de 40 óbitos em
Goiás (ver Gráfico 01). Observamos que as flexibilizações, conforme o gráfico
acima demonstra, iniciam no momento de aceleração dos contágios e de mortes em
Goiás. Quando o número de contágios aumenta, o aumento do número de óbitos sempre
vem à reboque. Ou seja, o governo promove isolamento social obrigatório somente
no início, quando ocorrem as transmissões comunitárias e passa
contraditoriamente a flexibilizar continuamente a abertura da economia, quando
a curva está no seu grau de maior ascendência e indo rumo ao pico de contágios.
Tudo foi realizado de forma errônea e irresponsável pelos gestores que apenas
atenderam ao lobby e a pressão de empresários e políticos, que em sintonia com
o governo Federal, colocam sempre o lucro acima da vida humana. O correto era a
realização maciça de testagem genética (RT-PCR) e a manutenção do isolamento social
com apoio financeiro irrestrito aos trabalhadores
e também aos pequenos e médios empresários, a fim de se ter evitado a tragédia
de 5.444 mortos em Goiás até o dia de hoje (números subnotificados). Essas recomendações
não são algo novo, foram adotadas por países que atualmente conseguiram
controlar a pandemia, como o Uruguai, a Coréia do Sul e outros.
Já na primeira quinzena de
julho, quando a curva toma a chamada forma de “foguete”, apresentando uma
inclinação ascendente quase vertical, o governo de Goiás e a prefeitura de
Goiânia autorizam a abertura de bares, restaurantes, academias de ginástica,
escolas de natação o e também o comércio da região da rua 44 na capital. Nesse momento
já eram computados 740 mortes pela covid-19 no Estado de Goiás. Essa abertura
se deu na fase mais crítica da pandemia em Goiás, quando na verdade, seguindo os
protocolos científicos, deveria ser endurecida as regras de isolamento social e
não a sua flexibilização tal qual aconteceu. O que assistimos em julho foram
igrejas funcionando, alunos em academias, bares e restaurantes abertos e aulas
de natação durante o pico da pandemia em Goiás. O pico é a parte da curva onde
ocorre o ponto máximo de mortes diárias e de contágios. Neste ponto ocorre a
inflexão da curva, onde em seguida, ela passa a decrescer ou a se manter num
platô. E o platô é quando a curva se mantém numa média constante de contágios
ou de óbitos. Segundo o Gráfico 01, o pico ocorre justamente na última semana
de agosto, período no qual bares, restaurantes, escolas de natação e as
academias de ginástica já permaneciam abertas desde a semana anterior ao pico.
O que se assistiu depois foi uma aceleração de contágios e de mortes com surtos
em várias regiões e a continuidade do descontrole total da pandemia em Goiás. Ainda
observando o Gráfico 01, nota-se também que após o pico alcançado com média maior
do que 60 mortes diárias, se estabelece um platô com média móvel de mortes
altíssima e que perdurou até a segunda semana de outubro e somente após essa
data a curva começa a desacelerar e sair do alto platô. O platô iniciou após o
pico, ou seja, na última semana de agosto e se estendeu até a segunda semana de
outubro, durando cerca de dois (2) meses, provocando um total de aproximadamente
2.441 mortos (5.401 – 2.960) somente no
período de dois meses de manutenção do platô.
Devemos ressaltar ainda, que
após o decreto de quarentena assinado em março (Decreto n. 9633), não houve
nenhuma política pública eficaz e robusta no sentido de realizar a mitigação
dos contágios pelo vírus Sars-Cov-2 em Goiás. As únicas variáveis que guiavam
os gestores públicos eram o índice de ocupação de UTI’s e também o número de
mortos informados pelos cartórios. Sendo que essa última variável, o número
diário de mortos possui uma margem de erro próxima de 40%, que prova também ser
subnotificada, assim como o número de contágios.Os dados oficiais na realidade
mostram a pandemia no passado e não em tempo real, devido à subnotificação de casos
e de mortes, os gráficos e os números que observamos hoje, podem ser descrições
e imagens da pandemia há 30 dias atrás ou mais.
Consequentemente, o que assistimos após essa quarentena desorganizada e sem nenhum planejamento foi a própria natureza guiando a pandemia no Estado de Goiás. A natureza possui mecanismos para criação de pandemias como sistema de auto-proteção e para a preservação de espécies ameaçadas, mas a natureza também possui mecanismos inteligentes para por fim às pandemias criadas pelo homem ou por ela própria. O chamado clusters de mortos ocorre quando o vírus atinge um grau máximo de contágios, contaminando um percentual grande de uma população, e então, devido a esse contágio maciço, o próprio vírus acaba ficando sem muitas opções para novos contágios, pois grande parte ou quase toda a população já foi contaminada ou foi a óbito. Neste momento de altos índices de contaminações, surgem os chamados “clusters”, que são na verdade grandes barreiras ou “paredes” formadas somente por indivíduos contaminados ou de mortos, que por si só, acabam freando a velocidade de propagação do vírus e amortecendo a curva da pandemia, tal qual observamos no Gráfico 01 atualmente no mês de outubro de 2020. A partir de março não foram realizadas políticas robustas e eficazes de controle da pandemia, vemos a partir de então, a um crescimento acelerado de contágios, com o pico em agosto e em seguida uma desaceleração em outubro. Neste período de platô a natureza começava a criar o seu “clusters” de pessoas contaminadas e de mortos, esse processo durou cerca de dois meses, até o momento em que os números alcançaram níveis tão absurdamente elevados de mortos e de contaminados, que o vírus “joga a toalha”, não tendo mais muitas opções para novas contaminações, e passa a ter uma velocidade de contágio menor e menos acelerada. Porém, a opção da escolha deliberada e irracional pelo agir da própria natureza na pandemia, é considerada eticamente errada, desumana e também imoral, pois permite que o grande número de mortos e de contaminados se torne uma barreira natural a fim de frear e deter a pandemia. Porém, é exatamente isso o que estamos assistindo em Goiás e no Brasil como um todo, onde nenhum estado da federação conseguiu alcançar o tão almejado “achatamento da curva” pandêmica. Ainda temos que ressaltar o papel importante das mutações genéticas do vírus, e as constantes reinfecções, que torna impossível atingir a chamada imunidade de grupo ou de rebanho, que só ocorre com a vacinação em massa da população e não através do simples contágio.